«Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Ajudar "pessoas em situação de pobreza", deve ser sempre um remédio provisório. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho» Laudato Si: página 88.

sábado, 14 de janeiro de 2017

A Hipólito Fortoul e Huchard 15-01-1831

Lião, 15 janeiro de 1831

   Conforme pode ler-se a págs. 9/10 das "Cartas de Frederico Ozanam" (ed. de 1925), esta carta foi escrita alguns meses depois de o Autor ter saído do colégio. Seu Pai, que o destinava à carreira de notariado, arranja-lhe colocação num escritório de advogado, para desconsolo do futuro fundador das Conferências, que alentava outros sonhos. Ozanam "vingava-se" lendo e escrevendo sem cessar sobre os assuntos que realmente lhe interessavam. Pertencem a essa época várias peças das suas polémicas com os socialistas são-simonianos. (Membros de uma seita segundo a qual podia adquirir-se por dinheiro a fé, as graças espirituais, os cargos eclesiásticos, etc.).
   A quem ler com atenção com esta interessantíssima carta, não passarão certamente despercebidas algumas características dignas de nota: a profissão de Fé cristã do seu Autor e também o seu amor pela ciência; o seu enciclopedismo cultural; os seus ambiciosos planos de estudo; o gosto pelo trabalho de grupo; o entusiasmo juvenil; o espírito de camaradagem; um certo romantismo ingénuo, que tão bom quadrava a um jovem de 17 anos, cheio de vontade de se valorizar e de servir a Causa de Deus e o bem do próximo.
   Efectivamente, pode dizer-se que, já naquela idade, Ozanam acalenta duas grandes paixões: a Religião e a Ciência.  O que se explica pela sua atitude de permanente curiosidade perante a Vida e de profundo amor pela humanidade. Ele como que se sente impelido, por uma força inelutável, a conhecer tudo sobre os mistérios da Natureza e sobre a existência do Homem; e onde o conhecimento científico não baste para o elucidar, recorre à Fé cristã para obter resposta satisfatória à questões que coloca.
   Antes de mais, porém, confessa a sua perplexidade:

      "Cercado como estou por mil opiniões directamente contraditórias, que assaltam sem cessar os meus ouvidos com os seus argumentos recíprocos, já construí vinte sistemas, dos quais  nenhum pôde manter-se; fiz cem conjunturas que os acontecimentos vieram desmentir: e agora eis que, cansado de politicar, de conjuturar, vejo mudar a charada em acção e espero que digam bem alto a aplavra do enigma".   

    A palavra, ou seja, a solução do enigma... eis a busca ansiosa de Ozanam! 

   Tanto mais que a face da terra modou radicalmente, em virtude das profundas mutações políticas e sociais ocorridos nos últimos decénios. Daí que confidencie aos seus amigos Foutoul e Huchard:

      " Como vós, sinto que o passado caí, que as bases do velho edifício estão abaladas e que uma terrível sacudidela mudou a face da terra. Mas que deve sair destas ruínas? A Sociedade deve manter-se envolvida nos escombros dos tronos derrubados ou deve antes reaparecer mais brilhantes, mais jovem e mais bela? Veremos novos coelos et novam terram? (céus e nova terra)...Eis a grande questão. Eu, que acredito na Providência e não desespero do meus país, como Carlos Nodier, creio numa espécie de palingenésia. .Mas qual será a sua forma, qual a lei da sociedade nova? Não tento decidi-lo". 

   Uma palingenésia, um impulso renovador do homem e da sociedade, uma regeneração, cujos contornos Ozanam não se atreve a definir. Mas há que encontrar ao menos uma "barca de salvação", um rumo a seguir para porto seguro. O sentimento mais íntimo de Ozanam permite-lhe enunciar um princípio de resposta a esta ansiedade: "a primeira necessidade do homem, a primeira necessidade da sociedade são as ideias religiosas; o coração tem sede de infinito". E explica:

      " ... reconheço em toda a religião dois elementos bem distintos: um elemento variável, particular, secundário, que tem a sua origem nas circunstâncias de tempo e de lugar nas quais cada povo se encontrou e um elemento imutável, universal, primitivo, inexplicavel pela História e pela Geografia".

   Até que - continua Ozanam - "a minha alma, pelas forças da sua razão, encontrou precisamente este catolicismo que me foi outrora ensinado pela boca de uma excelente mãe, tão cara à minha infância e que alimentou tantas vezes o meu espírito e o meu coração com as suas belas recordações e as suas esperanças ainda mais belas, o catolicismo com todas as suas grandezas, com todos os seus encantos!"
   Essa será a coluna do tempo, "apoiada sobre a Ciência, luminosa com os raios da Sabadoria, da Glória e da Beleza; esse será o farol da libertação. "E talvez um dia a Sociedade viesse a reunir-se toda ela sob esta sombra protectora; o catolicismo, pleno de juventude e de força, elevar-se-ia de súbito sobre o mundo, colocar-se-ia à cabeça do século renascente para o conduzir à civilização, à felicidade!"
   Utopia generosa de um adolescente ingénuo? Desiludidos e cépticos como hoje nos achamos, porventura cederíamos à tentação de formular um juízo desse tipo. Mas ouçamos a resposta de Ozanam a essa previsível observação: 

      " ... os trabalhos preliminares já me desvendaram a vasta perspectiva que acabo de descobrir e sobre a minha imaginação plana com arrebatamento. Mas não basta comtemplar o caminho que tenho a percorrer, é preciso iniciar a marcha, pois chegou a hora e se quero fazer um livro aos trinta e cinco anos, tenho de começar aos dezoito os trabalhos preliminares que são em grande número. Com efeito, conhecer uma dúzia de lìguas para consultar as fontes e os documentos, saber bastante possivelmente a Geologia e a Astronomia para poder discutir os sistemas cronológicos e cosmogónicos dos povos e dos sábios, estudar enfim a história universal em toda a sua extensão e a história das crenças religiosas em toda a sua profundidade: eis o que tenho de fazer para conseguir a expressão da minha ideia". 

   Para publicar um livro aos 35 anos, é preciso começá-lo aos 18! 
Palavras premonitórias, se considerarmos que quem as proferiu morreria aos 40...
   Ozanam pode ter a cabeça nas nuvens, mas os seus pés estão bem fincados na terra. O filósofo que há nele parte da observação atenta das realidades; e o crente não não prescinde dos contributos que lhe hão de advir de variadas disciplinas científicas.
   Extraordinária riqueza de uma personalidade em formação - naturalmente incipiente e talvez insegura, mas já promissora dos altos voos que em breve iria desferir... 





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