APROXIMA-SE, a passos largos a Peregrinação Anual Vicentina a Fátima, dias 22 de 23 de abril.
Este ano é um ano especial, coincide com tres datas e um acontecimento também especial.
400 Anos deu-se em Folleville 1617 passado por Châtillom.
300 Anos a Congregação da Missão em Portugal pelas mãos de Padres Lazaristas.
100 Anos sobre as aparições de Fátima.
E, anuncio de canonização dos pastorinhos Francisco e Jacinta.
Então convidaria dedicar-nos este tempo, como preparação em oração.
«Somos chamados ao trabalho desde a nossa criação. Ajudar "pessoas em situação de pobreza", deve ser sempre um remédio provisório. O verdadeiro objectivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do trabalho» Laudato Si: página 88.
quarta-feira, 29 de março de 2017
quarta-feira, 22 de março de 2017
«São Vicente de Paulo» Simplicidade - Humildade - Mansidão - Mortificação - Zelo Apostólico
1. SIMPLICIDADE
A
virtude da Simplicidade educa-nos na capacidade de desenvolver os valores da
verdade, da sinceridade, da transparência. Viver plenamente a simplicidade nos
ajudará a evitar ser falsos uns com os outros e muito menos com o povo; por
esta virtude somos chamados a ser simples, a dizer as coisas como são, sempre
com sinceridade em relação à outra pessoa.
Diante
dos desafios que o pluralismo de ideias e de valores e contravalores que a
sociedade capitalista nos impõe, precisamos ficar mais atentos em relação à
nossa postura junto ao povo e o cultivo de valores que não são transitórios,
mas base para a vida com dignidade. Um desses valores é o cultivo da
simplicidade. O povo ao qual procuramos evangelizar se aproximará de nós
mediante nossa postura diante dele. A simplicidade impregnada em nossos atos
possibilitará essa pedagógica aproximação do povo mais simples a nós e
vice-versa.
O
próprio São Vicente definiu na sua vivência a importância desta virtude na vida
de um vicentino: “A simplicidade é a virtude que mais amo, eu a chamo
de meu evangelho” (SV I,284).
a. Eixo Vicentino: A
vivência da Virtude da Simplicidade educa-nos para a proximidade do mundo dos
pobres na realidade de hoje em seu universo socioeconómico, cultural,
religioso, geográfico; tal aproximação coloca-nos em clima de disponibilidade
para acolhermos e nos aproximarmos do diferente, da compreensão do pluralismo
no meio da humanidade, favorecendo-nos em nossa missão de instrumentos da
universalidade da salvação inaugurada por Jesus de Nazaré em sua práxis
libertadora.
b. Dimensão Humana: A
vivência da Virtude da Simplicidade no concernente à dimensão humana leva-nos
ao tratamento da pessoa com o devido cuidado e atenção que ela merece, o que
favorece à mesma sentir-se saudável psíquica e fisicamente, pois sentir-se uma
pessoa amada no seio de uma comunidade e em meio à sociedade produz um aspeto
profundamente agradável no sentimento da autoestima. A simplicidade no nosso
viver vicentino leva-nos a quebrar barreiras na convivência com os mais pobres,
proporcionando-nos maior aproximação ao seu universo de vida, levando-nos a
contribuir no processo de sua própria educação, visando a integralidade da sua
própria pessoa.
c. Dimensão Espiritual: A
experiência da Simplicidade na vida exige de cada um de nós uma busca saudável
do equilíbrio entre trabalho e descanso recreativo. A Espiritualidade vicentina
necessita de uma forte experiência de Deus para que possamos irradiá-la no
serviço aos pobres. Consequentemente, nossa inserção no mundo dos pobres a
partir do cerne da nossa Espiritualidade, exige-nos a clara consciência de que
fazemos este esforço não por meras motivações, mas pela convicção de estarmos
contribuindo qualitativamente na construção do Reino de Deus aqui e agora.
d.
Dimensão Intelectual: A procura da vivência da Simplicidade no meio dos
pobres traz-nos também uma exigência no aspeto intelectual; para que a nossa
ação de aproximação ao mundo dos pobres seja sinal de transformação profética,
precisamos investir em nossa própria formação inicial e permanente, motivados
pelo ideal da compreensão das causas da pobreza para atacá-las com precisão.
Para essa formação permanente acontecer precisamos de motivações internas e
externas, lembrando que a sociedade atual, por si mesma, já nos faz essa
exigência, pois torna-se, progressivamente, mais pluralista e complexa. Neste
sentido, trabalhar com os pobres no nosso contexto atual exige de nós busca
constante de preparação intelectual justamente pelo respeito que devemos ter à
dignidade de todo ser humano. E o empobrecido não é um ser menos humano.
e. Dimensão Comunitária: Vivenciar a virtude da Simplicidade no
concernente à dimensão comunitária exige colocarmo-nos na escola do Evangelho e
também de São Vicente, para aprendermos sempre a alegria de partilhar com os
irmãos na fé, sobretudo os mais empobrecidos da nossa história o saber, os
bens, os dons e a vida. Nossa presença no meio do povo é sempre uma experiência
de troca de saberes em todas as dimensões da vida.
f f. Dimensão
Apostólica: Cultivar a Simplicidade em nossas
comunidades apostólicas compromete-nos a interiorizar progressivamente o valor
de distribuir responsabilidades com os irmãos de fé, lembrando-nos que um dos
aspetos da nossa vivência comunitária vicentina é alimentar nossa
espiritualidade para um autêntico testemunho missionário no meio dos pobres do
nosso tempo. Uma de nossas máximas é esta: Vida em comunidade para a
Missão.
Finalizando nossa reflexão sobre a virtude
da Simplicidade, vejamos uma belíssima descrição do próprio Vicente de Paulo
sobre esta máxima evangélica: “Deus é simples. Onde encontrares a
simplicidade cristã caminharás seguro; pelo contrário, os que recorrem a
precauções e artimanhas estão num medo contínuo de que descubram seu artifício
e que, ao se ver surpreendido em sua falsidade, ninguém quer ter confiança neles.
Da minha parte, posso afirmar, uma grande experiência me demonstrou, para minha satisfação que uma fé vigorosa e um verdadeiro espírito de religião encontram-se frequentemente entre as pessoas simples e pobres. Deus se compraz em enriquecê-las com uma fé viva: eles creem, apalpam, saboreiam as palavras de vida eterna que Cristo nos deixou em seu evangelho. Em geral, suportam pacientemente suas enfermidades, aflições e necessidades, sem nunca se queixarem ou murmurar.
Todo mundo sente atração por pessoas que
são simples e cândidas, pessoas que se recusam a empregar a astúcia, os
enganos. São populares, porque agem ingenuamente e falam com sinceridade; seus
lábios estão de acordo com seus corações. São amadas e estimadas em toda
parte…”(SV XI, 740s, 462).
2. HUMILDADE
São
Vicente de Paulo define a Humildade como a virtude que dá a característica
essencial à missão na Pequena Companhia. A humildade é a virtude que nos torna
capazes de reconhecer e admitir nossas fraquezas e limitações, criando assim a
possibilidade de confiar mais em Deus e menos em nós mesmos. A humildade
ajuda-nos a nos livrarmos da nossa autossuficiência, a reconhecermos nossa
dependência do amor do Criador e nossa interdependência comunitária. Ao mesmo
tempo, a humildade nos capacita para reconhecer nossos talentos, talentos que
devem ser postos a serviço das outras pessoas. É a virtude que permite aos pobres
aproximar-se de nós. É a virtude que nos ajuda a ver que todos somos iguais aos
olhos de Deus. A vivência desta virtude educa-nos e capacita-nos, em
contrapartida, para aproximar-nos progressivamente dos Pobres. Esta virtude nos
impulsiona a um processo contínuo de inculturação no mundo dos pobres,
encorajando-nos a um esforço de identificação com os mesmos.
Diante
de uma sociedade tremendamente hedonista, individualista, separatista,
perfeccionista do ponto de vista da aparência física em detrimento do cuidado
integral do ser, a vivência da humildade se torna mais desafiadora, pois
exige-nos maior sociabilidade a partir de dentro do nosso próprio lar, nosso
grupo de convívio.
a. Eixo Vicentino: A humildade, segundo São Vicente, é a virtude
eminentemente evangélica. Jesus é o único mestre. Na conferência de 18 de abril
de 1659, São Vicente se perguntou: “Em que consiste a humildade?” E
respondeu: “Em querer o desprezo, em desejar a humilhação, em
alegrar-se quando nos vemos humilhados, por amor a Jesus Cristo”. (SV
XI, 488) A humildade faz-nos criar um sentido de pertença a um objetivo comum.
Quando estamos dispostos a formar comunidade, construir unidade, nos
entusiasmamos em trabalhar com objetivos comuns, somos capazes de nos doar,
propor, aceitar e reconhecer como comunidade em vista da missão de evangelizar
comunitariamente os pobres.
b. Dimensão Humana: A virtude da humildade nos educa para a tolerância
dialogada. Torna-se condição necessária para desenvolvermos, crescermos e
fortalecermos como pessoas em comunidade, em sociedade de vida apostólica, como
atitude que nos leva a reconhecer que todos necessitamos do outro para
enriquecermos e superar nossas próprias dificuldades e individualidades. A
abertura ao diálogo, o respeito, a atitude de compartilhar, a capacidade de
escutar, de falar e de agradecer podem ser formas muito atuais da virtude da
humildade.
c. Dimensão Espiritual:.
Reconhecer que somos redimidos pelo Ressuscitado. A humildade nos faz ver que o
ser humano é pecador e o sensibiliza perante o pecado. A atitude de nos
reconhecer pecadores perdoados pelo sangue de Cristo nos responsabiliza a
reconhecer que nossa vida se enriquece e fortalece com o perdão; o perdão
implica aceitação, e para aceitar é necessário sair de nós mesmos, esvaziarmos de
nós mesmos, dar um passo na direção do outro, quebrar nossas arestas, derrubar
muros, construir pontes.
d. Dimensão Intelectual:. Reconhecer que somos pessoas limitadas,
interdependentes, complementares. Temos opiniões diferentes diante da realidade
que nos cerca e por isso mesmo a vivência da virtude da humildade nos faz
constatar que é necessário estar dispostos à escuta dos outros e à reflexão,
para juntos construir o caminho do discernimento coerente ao clamor da
realidade.
e. Dimensão Comunitária: A virtude da humildade nos faz conscientes de
nossas limitações e nos capacita para a aceitação da colaboração do outro em
vista da missão. A atividade missionária corre sempre o risco de ser dominadora
e autossuficiente, de encerrar-se nas próprias ideias e métodos, de negar a
colaboração do outro e da outra. A humildade faz com que o missionário, ao
mesmo tempo que evangeliza, se deixe evangelizar e que pregue não sua palavra,
mas a Palavra de Deus, assegurada pelo magistério da Igreja.
f.
Dimensão Apostólica: A virtude da
humildade nos impulsiona a posicionarmos diante da missão apostólica não como
donos de determinada situação, mas como seres que estão dispostos a somar
nossas qualidades e dons, simplesmente como colaboradores. Isso requer um processo
de conversão onde cada um coloca o seu ser e faz o maior esforço para suscitar
a mudança pessoal e estrutural, na sã consciência de que o único indispensável
é a presença de Deus. Tudo o mais é transitório, instrumental para a eficácia
da construção do Reino de Deus.
Concluindo a reflexão sobre a virtude da
humildade, lançamos mão de palavras do próprio São Vicente em seus magníficos
escritos, destacando sua dimensão missionário-pastoral. Vejamos: “Entendei
bem isto, meus senhores e meus irmãos: nunca poderemos fazer a obra de Deus se
não tivermos uma profunda humildade e uma humildade de opinião sobre nós
mesmos. Não, se a Companhia da Missão não é humilde, se não tem a fé e a
convicção de que não pode fazer o bem, que é mais apta para atrapalhá-lo, nunca
realizará nada de grande; mas quando tem e vive o espírito do que acabo de
dizer, então, ficai seguros, senhores, estará capacitada para fazer a obra de
Deus, porque Deus usa de seus membros para suas grandes obras” (SV IX,
71, 284,809).
3. MANSIDÃO
Etimologicamente,
mansidão vem de “mansuetude” e manso de “mansus”, forma do latim vulgar de
“mansuetus”. Tem um significado de comportamento aconchegante, familiar,
doméstico. Conceitualmente, a mansidão se entende como a força, a virtude, que
permite a pessoa moderar razoavelmente sua ira e indignação. A razoável
indignação pode ser com frequência sã e saudável, transposição lícita da
sobrecarga psicológica a um ato de zelo pela glória de Deus, pela justiça ou
pelo bem do próximo. A mansidão não é agressiva, raivosa, barulhenta.
Certamente é uma virtude chave na comunidade. É a virtude que ajuda a construir
a confiança de uns nos outros, porque, quando somos amáveis, os que são tímidos
se abrirão em relação a nós. Por estas razões podemos dizer que a mansidão é a
virtude por demais vocacional, como constatou o próprio São Vicente: “Se
não se pode ganhar uma pessoa pela amabilidade e pela paciência, será difícil
consegui-lo de outra maneira ”(SV VII, 226).
A
mansidão inspira um trato suave, agradável, educado, e fundamenta a tolerância,
valor este muito importante para a convivência em uma sociedade plural em que o
respeito à pessoa e à sua liberdade deve ser uma lei indiscutível.
a. Eixo Vicentino: Com certeza, todas as virtudes contribuem para o
dinamismo da vida comunitária em vista da missão. Todas as virtudes trazem em
seu bojo um aspeto construtivo da vivência comunitária, porém é evidente que a
mansidão entra em jogo por seus próprios valores e porque a comunidade se faz
mediante relações plenas de conteúdo humano, cristão e vicentino. Devem ser
expressões de pessoas que se estimam, se querem e se entreajudam. Toda atitude
dura, de rechaço, de desprezo, pode ser superada precisamente pela prática da
mansidão.
b. Dimensão Humana: A
vivência da mansidão no aspeto humanitário ajuda-nos no processo da aceitação e
compreensão da cultura do outro, nos colocando num processo de crescimento
junto ao diferente, abrindo-nos à dinâmica da inculturação, educando-nos no
processo da complementaridade. No trabalho junto aos mais pobres essa abertura
é essencial para uma autêntica inserção popular.
c. Dimensão Espiritual: Viver
a virtude da mansidão no aspeto espiritual compromete-nos a inspirarmos na
mansidão divina para com o seu povo na caminhada da história da salvação. Remete-nos
à práxis da paciência histórica mediante a atitude do Criador para com as suas
criaturas. Sem dúvida, um tema relacionado com a mansidão é o da hospitalidade,
que é uma característica que deve distinguir um Vicentino: uma pessoa
acolhedora; uma pessoa que está atenta às necessidades dos outros,
especialmente dos marginalizados e transeuntes.
d. Dimensão Intelectual: A mansidão causa a paz e cria melhores condições
para o discernimento. A importância que tem, moral e espiritualmente falando, o
cultivo da mansidão, é que livremente, permite-nos ver a importância da paz
interior e exterior como condições para um bom discernimento. Se não há paz
interior, tranquilidade e serenidade, a opção sempre é suspeitosa e moralmente
imperfeita. Portanto, a mansidão é uma ferramenta que nos ajuda a buscar e
defender a verdade, favorece a busca incansável do discernimento no serviço aos
pobres.
e. Dimensão Comunitária: A vida em comum, se não está animada pela
mansidão, se torna insuportável. É evidente que é difícil conviver com pessoas
irritáveis e duras. A condescendência pode ser uma expressão indubitável de
mansidão. São Vicente disse o seguinte sobre a condescendência: “Em uma
comunidade, é necessário que todos os que a compõem e que são como seus membros
sejam condescendentes uns com os outros. Com esta disposição, os sábios têm que
condescender com a debilidade dos ignorantes, nas coisas em que não há erro e
nem pecado. Os prudentes e sábios devem condescender com os humildes e simples.
E com esta mesma condescendência, não só temos de aprovar os pareceres dos
demais nas coisas boas e indiferentes, senão incluso preferirmos aos nossos,
crendo que os demais têm luzes e qualidades naturais e sobrenaturais maiores e
mais excelentes do que nós. Porém temos de evitar muita condescendência com os
outros em coisas más, pois isto não seria virtude, senão um defeito, que
proviria da libertinagem de espírito, ou de nossa covardia e pusilanimidade” (SV
XI,758).
f. Dimensão Apostólica: A apostolicidade da virtude da mansidão consiste
basicamente em centrar nossas pregações no discernimento da procura da justiça
e da paz que brotam da Palavra de Deus. Neste sentido, convém estar convictos
de que nossas atitudes de bondade e coerência convencem muito mais as pessoas
do que sermões, muitas vezes carregados de sentimentos contraditórios e
moralismos exagerados. Nossas atitudes evangelizam mais que nossas palavras.
Por isso mesmo, elas necessitam estar imbuídas da sensibilidade social na
defesa incondicional dos direitos da pessoa humana, sobretudo dos mais pobres e
excluídos.
No final desta reflexão sobre a virtude da
Mansidão, vejamos mais algumas palavras do mestre Vicente de Paulo: “Não
há pessoas mais constantes e firmes no bem que aqueles que são mansos e
pacíficos; pelo contrário, os que se deixam levar pela cólera e pelas paixões
são geralmente muito inconstantes, porque agem por impulsos e ímpetos. São como
as correntezas que só têm força e impetuosidade nas chuvas, mas secam logo
depois de ter passado o temporal, enquanto os rios que representam as pessoas
pacíficas caminham sem ruído, com tranquilidade, sem jamais secar” (SV
XI, 752).
4.
MORTIFICAÇÃO
Por
esta virtude somos interpelados a morrer para nós mesmos. É a virtude que pede
que nos entreguemos totalmente, pensemos primeiro nos outros, pensemos
especialmente nos Pobres antes de pensar em nós mesmos. Esta virtude educa-nos
para o altruísmo em detrimento do nosso egocentrismo.
Assim
nos diz São Vicente: “Os santos são santos porque seguem as pegadas de
Jesus Cristo, renunciam a si mesmos e se mortificam em todas as coisas” (SV
XII, 227).
a. Eixo Vicentino: Em
tempos de busca de refundação da Vida Consagrada, urge-nos enquanto vicentinos
aprofundar o carisma que nos identifica no mundo e retomar nossas tradições
fundantes, bem como nossas constituições, nossos bons costumes como alimentos
sólidos em vista de um testemunho mais autêntico na humanidade hodierna.
b. Dimensão Humana: Embora
nosso tipo de trabalho seja diverso do que a maioria da população, cabe-nos
saber utilizar bem o nosso tempo e os meios que temos em nossas mãos em vista
da nossa missão junto às pessoas. Em respeito e solidariedade ao trabalho duro
das pessoas para sobreviver temos o dever moral de fazer bom uso de tudo o que
dispomos. É preciso que utilizemos o tempo responsavelmente.
c. Dimensão Espiritual: A
oração pessoal e comunitária é uma fonte irrenunciável para um autêntico
vicentino, por isso mesmo foi insistentemente recomendada por São Vicente. É
muito importante rezar de modo disciplinado, dar à oração seu tempo,
compartilhar com os irmãos sua espiritualidade, fazer dos sacramentos um
alimento para a vida missionária.
d. Dimensão Intelectual: Em contrapartida ao consumismo desenfreado da
sociedade, é saudável viver a sobriedade diante do uso das coisas, levar um
estilo de vida simples, educarmos numa vida ascética, por mais difícil que
seja. Para conseguirmos dar passos neste sentido, é profundamente necessário
que utilizemos em tudo o senso crítico dentro de uma corresponsabilidade
evangélica.
e. Dimensão Comunitária: A vivência comunitária exige-nos,
progressivamente, profunda sensibilidade evangélica. Por sermos irmãos no
Senhor, é de se supor que sempre nos sentiremos mais próximos uns dos outros.
Portanto, que nossas amizades não sejam exclusivas nem excludentes. Hoje todos
somos chamados a participar no processo de tomada de decisões e a viver uma
obediência responsável. Interpela-nos expressar nossas opiniões. Isto gasta
muito tempo e, às vezes, é penoso. Por isso mesmo é para alguns uma grande mortificação.
f. Dimensão apostólica: Entendendo
por mortificação renunciar a comodidades para nos doarmos para que o outro
tenha mais vida, cabe-nos estar dispostos para responder às necessidades da
própria comunidade e às do povo de Deus, sobretudo aceitando as mudanças de
local geográfico e social, vendo nesta dinâmica de vida apostólica os apelos do
Deus da Vida. Todos nós somos dotados de muitas qualidades e talentos.
Colocá-los a serviço é sempre uma virtude. A apostolicidade da virtude da
mortificação nos impulsiona a estarmos sempre abertos ao inesperado, pois com
frequência somos interpelados a responder a novas situações, e isso extrai de
nosso interior recursos pessoais que nem sabíamos que possuímos. Portanto, a
abertura ao novo é profundamente necessária na espiritualidade vicentina.
Bebamos mais um pouco na fonte de Vicente de Paulo sobre a virtude da
Mortificação: “Somos firmes em resistir à natureza, pois se permitimos
que alguma vez se cole em nós um pé, se meterá até quatro. E estamos seguros de
que a medida de nosso progresso na vida espiritual está em nosso progresso na
virtude da mortificação, que é especialmente necessária para os que hão de
trabalhar na salvação das almas, pois é inútil que preguemos a penitência aos
demais, se nós estamos vazios dela e se não a demonstramos em nossas ações e
modo de nos comportar” (SV XI, 758-759).
5. ZELO APOSTÓLICO
Podemos
identificar o zelo apostólico com paixão pela humanidade. O zelo é a consequência
de um coração verdadeiramente compassivo. Trata-se da paixão por Cristo, paixão
pela humanidade e paixão especialmente pelo Pobre. O zelo é uma virtude
verdadeiramente missionária. Expressa-se em forma de disponibilidade, de
disposição para o serviço e a evangelização, mesmo quando as forças físicas já
estão decadentes.
Assim
sendo relacionado com o zelo está o entusiasmo, que leva à ação. Podemos
entender o zelo como uma expressão concreta do amor efetivo, que é motivado
pela compaixão, ou amor afetivo.
a. Eixo Vicentino: O
zelo é a quinta virtude característica e mais própria do missionário vicentino.
O próprio São Vicente assim qualifica o “zelo pelas almas”: “Se o amor
de Deus é um fogo, o zelo é sua chama. Se o amor é um sol, o zelo é o seu raio” (SV
XII, 307-308). O Zelo Apostólico é o amor pela missão que dura a vida inteira.
Vicente de Paulo trabalhou com constância até o final de sua vida. O Zelo é, pois,
e antes de tudo, entusiasmo, e entusiasmo significa cheio de Deus, plenitude de
Deus.
b. Dimensão Humana: Zelo
é amor ardente, uma disponibilidade para ir em qualquer lugar para falar de
Jesus Cristo, ainda que em circunstâncias difíceis; disponibilidade para morrer
por Ele. O testemunho do zelo apostólico inclui não só um profundo amor afetivo
pelo Senhor e por seu povo, mas também deve se expressar no amor efetivo e no
sacrifício. Para bem e melhor servir ao povo a nós confiado torna-se necessário
o devido cuidado com nossa saúde e o equilíbrio do nosso ser.
c. Dimensão Espiritual: O
Zelo cria a disponibilidade de ir a todo o mundo levar, como Jesus Cristo e os
apóstolos esse fogo de amor e de temor de Deus. O Zelo fortalece, aumenta a
capacidade de trabalhar, capacita para sofrer tudo pela glória de Deus e
salvação do próximo. O Zelo atualiza o comportamento do missionário, aceitando
as exigências da Nova Evangelização: novos conteúdos, novas expressões, um novo
ardor que não é outra coisa que a atualização do zelo apostólico ou da caridade
apostólica. Para esta finalidade precisamos de uma sólida espiritualidade
vicentina.
d. Dimensão Intelectual: Zelo é amor fiel e perseverante. É fácil amar
durante algum tempo. Mas amar durante toda a vida é mais difícil. Assumir
compromissos permanentes é hoje mais difícil do que foi no século XVII,
sobretudo porque muitos dos apoios sociais que ajudavam a sustentá-los naquele
tempo, hoje desapareceram.
O Zelo hoje se manifesta como fidelidade.
Ouro provado no fogo. Exige-nos encontrar criativamente novas maneiras de amar,
apesar das mudanças bruscas. Como afirmava São Vicente: “O amor é
inventivo até o infinito” (SV XI, 65).
O Zelo leva o missionário a adaptar-se e
encontrar novas formas de servir aos pobres, apelando à capacitação
profissional e especialmente através da formação permanente. Assim nos tornamos
mais efetivos perante um mundo mais exigente.
e. Dimensão Comunitária: Demonstra-se Zelo com o desejo de conseguir
operários para a messe. Com o entusiasmo em comunicar a Palavra pela
convivência agradável dentro e fora da comunidade interna. O amor é contagioso.
O fogo se propaga. Um amor ardente busca se comunicar aos outros, atrai todos à
mesma maravilhosa missão com que se está comprometido. O Zelo nos leva a
compartilhar com alegria com outras pessoas, aproveitando os espaços formais e
informais. O Zelo é amor fiel e perseverante.
f. Dimensão Apostólica: O Zelo indiscreto se mostra hoje com o trabalho
excessivo, muitas vezes sem critérios equilibrados. Hoje é tão importante como
no tempo de São Vicente, o conhecer nossas limitações, aceitar nossa condição
de seres criados, o desenvolver um estilo de vida equilibrado que inclui o
descanso suficiente e o tempo de lazer. Também é importante manter-se em boa
condição física para ter a energia que caracteriza o zelo. A ética do cuidado
aplica-se interinamente ao nosso ser por causa da missão.
Outro aspeto da dimensão apostólica do
Zelo é a busca de assumirmos responsabilidades compartilhadas, trabalho em
equipe, decisões colegiadas. Esse caráter educa-nos para a valorização dos
ministérios em suas múltiplas modalidades apostólicas e teologais.
Enriqueçamos nossa visão sobre o Zelo
Apostólico com palavras inquietantes de Vicente de Paulo: “Buscamos a
sombra, não nos gosta de sair ao sol. Não goste tanto da comodidade! Na missão,
pelo menos, estamos na igreja, a coberto das injúrias do tempo, do ardor do
sol, da chuva, ao que estão expostas essas pobres gentes. E gritamos pedindo
ajuda quando nos dão um pouquinho mais de ocupação que do ordinário! Meu
quarto, meus livros, minha missa! Está bem! É ser missionário, ter todas as comodidades?
Deus é nosso provedor e atende todas nossas necessidades e algo mais, nos dá o
suficiente e algo mais. Não sei se nos preocupamos muito de agradecê-lo.
Vivemos do patrimônio de Jesus Cristo, do suor dos pobres” (SV XI,
120-121).
Palavras Conclusivas:
As
virtudes características nos ajudam a permanecer fortes diante de qualquer
obstáculo que nos dificulte viver plenamente a vocação a que fomos chamados.
Como sabemos, as virtudes características são aqueles valores evangélicos que
São Vicente contemplava, de modo especial em Jesus Cristo. São virtudes de que
sentiu necessidade e, ainda mais, que se esforçou por viver, compreender e por
em prática durante toda a sua vida.
Façamos da oração de São Vicente para pedir o Zelo,
nossa súplica missionária: “Ó Salvador, ó meu bom Salvador, apraza à
vossa divina bondade livrar a Missão deste espírito de ociosidade, de busca das
próprias comodidades e dar-lhe um zelo ardente por vossa glória, que faça
abraçar tudo com alegria e que nunca a deixe recusar uma ocasião de vos servir ”(Repetição
de Oração de 24 de julho de 1655).
domingo, 19 de março de 2017
São Vicente e Portugal
S. Vicente em troca de correspondência com o Pe. Codoing superior de
Roma, em 1644, dizia: fiquei bem impressionado com a vocação daquele povo e
talvez faça chegar para lá um sacerdote para Portugal. Foi a evangelização do
Oriente e as viagens dos missionários para Madagascar que fizeram Vicente
pensar em Lisboa como lugar de passagem e decisão. O projeto não se realizou,
mas mostra o interesse de S. Vicente por Lisboa. Claro que nessa altura
Portugal fazia parte de Espanha, embora já se passa 4 anos da Independência em
1640.
O que apraz registar, me pareceu que foi a partir
desta altura, mais propriamente que os Padres Lazaristas começaram a afixar por
Portugal. Remeto o pequeno texto deixando à vossa leitura atenta.
S.
Vicente e Portugal
Uma carta de Vicente
de Paulo para o Pe Codoing, superior de Roma, dizia, a 12 de agosto de 1644:
“Segundo me diz na sua última, se formos para Goa, poder-se-á fazer chegar
todos os anos de Lisboa a Goa e de lá a Ispaáo. O que V. Rev. me diz da vocação
para aqueles lugares impressiona-me, nomeadamente o caso das Índias. Já pensei
num sacerdote e num clérigo para Portugal: e talvez os mandemos por ocasião da
ida do embaixador que para lá val”
Foram poucas as
relambes de S. Vicente de Paulo com Portugal. Recorde-se que nos primeiros 60
anos de vida de S. Vicente, Portugal esteva politicamente ligado á Espanha. Só
a partir de 1640 Portugal existe como nação independente e, ainda assim, com
dificuldades várias para se impor na Europa e em Roma.
Foi a evangelização do
Oriente e as viagens dos missionários para Madagascar que fizeram Vicente pensar
em Lisboa como lugar de passagem e decisão. O projeto a que alude a carta acima
náo se realizou, mas mostra o interesse de S. Vicente por Lisboa.
A restauração da
independência de Portugal em 1640 não teve apenas dificuldades militares.
Também as teve diplomáticas. Madrid dificultou o reconhecimento da autonomia
portuguesa por parte de Roma. O reatamento das relações diplomáticas entre
Lisboa e Roma e o provimento das Sés portuguesas que iam vacando é o assunto
ou “as coisas” de que se trata nesta carta de S. Vicente a Mons. Ferentili, de
16 de outubro de 1654 (SVP tomo V p.62):
“Recebi a carta e o
livro que V. Ex. cia manda para o embaixador de Portugal, em cujas mãos eu
mesmo o entreguei e que e lê recebeu com muito respeito e testemunho de gratidão
por V. Ex. cia. Daí tomei ensejo para lhe dizer duas palavras sobre V. Ex. cia
e da considerarão de que goza, tanto na corte de Roma como nesta, e isso,
Monsenhor, em vista das coisas que o seu amo demanda em Roma e da exposição que
deve fazer das mesmas que procura. Não abriu a carta de V.E. na minha presença,
mas fez-me a honra de me dizer que desejava vir passar um dia inteiro connosco
em S. Lázaro, para me dar a honra de falar mais á vontade. Se tal honra me
conceder, pode estar certo, Monsenhor, de que nada esquecerei do que julgar a
propósito dizer-lhe para seu serviço”.
O embaixador de que se
Pala aqui era D. Francisco de Sousa Coutinho (cf Hist. Diplomática de
Portugal, vol I, 144)
Igualmente digna de
nota é a carta que, de Madagascar, escreve o P. Étienne a S. Vicente, em 1 de
março de 1661. “bem necessário seria que todos quantos destinardes para as
Índias (refere-se a todo o Oriente) soubessem a língua portuguesa, porque é
entendida em toda a parte, e quase não há negros, sobretudo nas Índias, que a
não falem. E o que tenho ouvido dizer a toda a gente e o que eu mesmo tenho
observado”. S. Vicente não leu esta carta, mas ela mostra que Portugal não era
desconhecido para o santo.
Lazaristas
em Lisboa
Na viagem (sem
retorno) que os missionários faziam para Madagascar, passavam ao largo da costa
portuguesa. Apenas a quinta expedição, que saiu de Nantes a 14 de Marco de 1658
e composta pelos Pes. Le Blanc, Arnoul, Desfontaines, Daveroult, o clérigo
Delaunay, um irmão coadjutor e dois negros que tinham sido catequizados em S.
Lázaro e agora regressavam á sua terra natal, aportou a Lisboa.
Uma tempestade avariou
o barco (outra versão diz que foi assaltado por piratas), que oito dias depois
aportou a Lisboa, por avaria. Os missionários foram acolhidos no palácio do
Conde de Óbidos (hoje, edifício da Cruz Vermelha), sobranceiro ao Tejo.
Reparadas as avarias o barco seguiu viagem com os missionários, menos o Pe
Daveroult que, certamente, por doença não embarcou. Os Condes de Óbidos, D.
Vasco e D. Joana, hospedaram e trataram carinhosamente os primeiros lazaristas
em Portugal. O Pe Daveroult ficou em Lisboa até meados do ano seguinte, 1659
(cf. duas cartas em SVP, Coste Vol. VIII).
domingo, 5 de março de 2017
A Hipólito Fortoul e Huchard
Lião, 15 de Janeiro de 1831
Meus caros Amigos
Meus caros Amigos
Devo uma carta a Fortoul, a H ... uma resposta e o que queria dizer a um, tinha necessidade de o dizer também ao outro. Aliás, estais suficientemente ligados para não terdes segredos entre vós. Recebeis, pois, apenas uma carta, mas ela será grande ampla, cheia de palavras, senão de pensamentos; tereis uma boa conta.
Pois bem, a carta de H ... informou-me de que gozais ambos de muita boa saúde; felicito-vos por isso: a alma esta muito mais à vontade quando o corpo se sente bem disposto e estuda-se com muito maior facilidade, perseverança e resultado quando a dor não acomete de manhã à noite com as suas importunidades. Falo disso com algum conhecimento.
Mas, se os vossos órgãos passam bem, se o cérebro está livre, parece, pelas cartas do amigo H ..., ser a vossa alma que sofre, o vosso pensamento que está doente, o vosso coração que se inquieta na expectativa das coisas vindouras: suspensos entre um passado que se afunda e um futuro que ainda não acontece, vós votais-vos tanto para um, afim de lhe dirigir um derradeiro adeus, como para outro, afim de lhe perguntar: quem és tu? E como ele não responde, esforçais-vos por penetrar os seus mistérios, o vosso espírito agita-se em mil sentidos, corrói-se, devora-se e daí resulta um mal-estar invencível, inexprimível. No meio destes trabalhos intelectuais, no meio desta agitação profunda que, como vós, toda a capital experimenta, vós pensais neste pequeno Ozanam, antigo camarada de colégio, hoje pobre praticante de funcionário notarial, magro discípulo da filosofia e quereis saber o que ele pensa, o que pensa em torno dele.
O que se pensa à minha volta? Confesso que teria bastante dificuldade em relatá-lo. Creio, no entanto, que, falando de modo filosófico, na província não se pensa, ou pelo menos pensa-se muito pouco. Vive-se uma vida industrial e material; cada um trata da sua comunidade pessoal, do seu bem-estar particular; e depois, quando o cavalheiro está satisfeito, quando o cofre-forte está repleto, faz-se política em torno das lareiras ou das mesas de bilhar, fala-se muito de liberdade sem nada compreender do assunto, louva-se a conduta da guarda nacional e das escolas nas jornada de Dezembro, mas ninguém se importa com os protestos, as proclamações dos senhores da Escola de Direito; é-lhes censurado quererem governar o Governo e tentar implantar a sua pequena república no meio da nossa monarquia. A ordem material, uma liberdade moderada, pão e dinheiro, eis tudo o que se quer; está-se cansado das revoluções, deseja-se repouso; numa palavra, os nossos homens da província não são nem homens do passado nem homens do futuro; são homens do presente, os homens da balança, como diz a Gazeta.
São estas as minhas companhias; e quereis então que vos diga o que penso, eu pobre ananzinho, que apenas vejo as coisas de longe e através de versões muitas vezes enganadoras dos jornais e dos raciocínios ainda mais absurdos dos nossos políticos, como através de uma lupa nociva? Cercado como estou por mil opiniões directamente contraditórias, que assaltam sem cessar os meus ouvidos com os seus argumentos recíprocos, já construí vinte sistemas, dos quais nenhum pode manter-se; fiz cem conjunturas que os acontecimentos vieram desmentir: e agora eis que, cansado de politizar, de conjecturar, vejo mudar a charada em acção e espero que digam bem alto a palavra do enigma.
Entretanto, ter paciência, ler as notícias para saber simplesmente o que nos sucede, conserva-me tanto quanto possível fechado na minha individual, desenvolver-me à parte, estudar muito, agora fora da sociedade, para depois poder aí entrar de modo mais vantajoso para ela e para mim: eis o plano que tive necessidade de formar, que M. Noirot me encorajou a executar e que vos aconselho a adoptar também meus bons camaradas, pois em consciência nós estamos ainda muito verdes, não estamos ainda alimentados pela seiva vivificante da Ciência para poder oferecer frutos maduros à Sociedade. Apressemos-nos e, enquanto a tempestade derrubar muitas sumidades, cresçamos na sombra e no silêncio até nos encontrarmos homens feitos, cheios de vigor, quando os dias de transição houverem passado e alguém tiver necessidade de nós.
No que me diz respeito, tomarei o meu partido, tracei a minha tarefa para a vida e, na qualidade de vosso amigo, devo dá-la a conhecer.
Como vós, sinto que o passado cai, que as bases do velho edifício estão abaladas e uma terrível sacudidela mudou a face da terra. Mas que deve sair destas ruínas? A sociedade deve manter-se envolvida nos escombros dos tronos derrubados, ou deve antes reaparecer mais brilhante, mais jovem e mais bela? Veremos novos caelos et novam terram? (céus e uma nova terra?). Eis a grande questão. Eu, que acredito na Providência e não desespero do meu país, como Carlos Nodier, creio numa espécie de palingenésia. (renascimento). Mas qual será a sua forma, qual a lei da sociedade nova? Não tento decidi-lo.
No entanto o que eu creio poder assegurar é que há uma Providência e que esta Providência não pôde abandonar durante sei mil anos criaturas racionais, naturalmente desejosos do verdadeiro, do bom e do belo, ao meu génio do mal e do erro; que, por consequência, todas as crenças do género humano não podem ser extravagâncias e que houve verdades da parte do mundo. Trata-se de reencontrar estas verdades, de as desprender do erro que os envolve; é preciso procurar nas ruínas do mundo antigo a pedra angular sobre a qual se reconstituirá o novo. Seria pouco mais ou menos como estas colunas que, segundo os historiadores, foram levantadas antes do dilúvio para transmitir o depósito das tradições aos que sobrevivam, como a arca sobre-nadava através das águas, levando com ela os pais do género humano.
Mas esta pedra de esperança, esta coluna de tradições, esta barca de salvação, onde encontrá-la? Entre todas as ideia da antiguidade, ou desenterrando as únicas verdadeiras, as únicas legítimas? Por onde começar? Por onde acabar? Aqui detenho-me e reflicto: a primeira necessidade do homem, a primeira necessidade da sociedade são as ideias religiosas: o coração tem sede do infinito.
Aliás, se há um Deus e se já homens, são necessárias relações entre eles - Portanto uma religião; - por consequências, uma revelação primitiva; - por consequência ainda, há uma religião primitiva, antiga de origem e por isso mesmo essencialmente verdadeira.
É esta herança, transmitira do alto ao primeiro homem e deste aos seus descendentes, que eu estou interessado em procurar. Desloco-me, pois, através das regiões e dos séculos, removendo a poeira de todos só túmulos, investigando os escombros de todos os templos, exumando tos os mitos, desde os selvagens de Koock até ao Egito de Sesostris; desde os Indianos de Vishnu até aos Escandinavos de Odin. Examino as tradições de cada povo, pergunto-me a sua razão, a sua origem e, ajudado pelas luzes da Geografia e da História, reconheço em toda a religião dois elementos bem distintos: um elemento variável, particular, secundário, que tem a sua origem nas circunstâncias de tempo e de lugar nos quais cada povo se encontrou e um elemento imutável, universal, primitivo, inexplicável pela História e pela Geografia. E como este elemento se encontra em todas as crenças religiosas e aparece tanto mais inteiro, tanto mais puro quanto se remonta a tempos mais antigos, daí concluo que só ele reinou nos primeiros dias e que constitui a religião primitiva. Daí concluo, por consequência, que a verdade religiosa é a que, espalhada por toda a terra, se encontrou em todas as nações, transmitida pelo primeiro homem à sua posteridade, depois corrompida, misturada a todos as fábulas e a todos os erros.
Certamente protestais, zombais da temeridade deste pobre Ozanam, pensais na rã de La Fontaine e no ridículus mus de Horácio. Como quiserdes! Também eu me admirei da minha ousadia; mas que fazer? Quando uma ideia se apoderou de vós há dois anos e superabunda na inteligência, impaciente por expandir-se no exterior, é possível retê-la? Quando uma voz grita sem cessar: faz isto, eu quero-o! pode-se dizer~lhe se cale?
De resto, comuniquei o meu pensamento a M. Noirot, que muito me encorajou a cumprir o meu plano. E como lhe confidenciei que temia achar a carga demasiado pesada para mim, assegurou-me que encontraria bastantes jovens estudiosos prontos a ajudar-me com os seus conselhos e os seus trabalhos: estão pensei em vós, meus bons amigos. Queria ainda dizer-vos mais coisas, mas a saída do portador da carta não me deixa tempo. Em outra ocasião vos falarei da minha maneira de pensar sobre o São-Simonismo; ele aqui não vinga e em geral não é favoravelmente considerado.
O meu pequeno irmão Charlot escreveu a H . . ., mas não tenho a sua carta para anviá-la.
Adeus, (envio) muitas coisas para os camaradas de Paris; para vós, caros amigos, a amizade sincera do vosso companheiro de colégio.
O que se pensa à minha volta? Confesso que teria bastante dificuldade em relatá-lo. Creio, no entanto, que, falando de modo filosófico, na província não se pensa, ou pelo menos pensa-se muito pouco. Vive-se uma vida industrial e material; cada um trata da sua comunidade pessoal, do seu bem-estar particular; e depois, quando o cavalheiro está satisfeito, quando o cofre-forte está repleto, faz-se política em torno das lareiras ou das mesas de bilhar, fala-se muito de liberdade sem nada compreender do assunto, louva-se a conduta da guarda nacional e das escolas nas jornada de Dezembro, mas ninguém se importa com os protestos, as proclamações dos senhores da Escola de Direito; é-lhes censurado quererem governar o Governo e tentar implantar a sua pequena república no meio da nossa monarquia. A ordem material, uma liberdade moderada, pão e dinheiro, eis tudo o que se quer; está-se cansado das revoluções, deseja-se repouso; numa palavra, os nossos homens da província não são nem homens do passado nem homens do futuro; são homens do presente, os homens da balança, como diz a Gazeta.
São estas as minhas companhias; e quereis então que vos diga o que penso, eu pobre ananzinho, que apenas vejo as coisas de longe e através de versões muitas vezes enganadoras dos jornais e dos raciocínios ainda mais absurdos dos nossos políticos, como através de uma lupa nociva? Cercado como estou por mil opiniões directamente contraditórias, que assaltam sem cessar os meus ouvidos com os seus argumentos recíprocos, já construí vinte sistemas, dos quais nenhum pode manter-se; fiz cem conjunturas que os acontecimentos vieram desmentir: e agora eis que, cansado de politizar, de conjecturar, vejo mudar a charada em acção e espero que digam bem alto a palavra do enigma.
Entretanto, ter paciência, ler as notícias para saber simplesmente o que nos sucede, conserva-me tanto quanto possível fechado na minha individual, desenvolver-me à parte, estudar muito, agora fora da sociedade, para depois poder aí entrar de modo mais vantajoso para ela e para mim: eis o plano que tive necessidade de formar, que M. Noirot me encorajou a executar e que vos aconselho a adoptar também meus bons camaradas, pois em consciência nós estamos ainda muito verdes, não estamos ainda alimentados pela seiva vivificante da Ciência para poder oferecer frutos maduros à Sociedade. Apressemos-nos e, enquanto a tempestade derrubar muitas sumidades, cresçamos na sombra e no silêncio até nos encontrarmos homens feitos, cheios de vigor, quando os dias de transição houverem passado e alguém tiver necessidade de nós.
No que me diz respeito, tomarei o meu partido, tracei a minha tarefa para a vida e, na qualidade de vosso amigo, devo dá-la a conhecer.
Como vós, sinto que o passado cai, que as bases do velho edifício estão abaladas e uma terrível sacudidela mudou a face da terra. Mas que deve sair destas ruínas? A sociedade deve manter-se envolvida nos escombros dos tronos derrubados, ou deve antes reaparecer mais brilhante, mais jovem e mais bela? Veremos novos caelos et novam terram? (céus e uma nova terra?). Eis a grande questão. Eu, que acredito na Providência e não desespero do meu país, como Carlos Nodier, creio numa espécie de palingenésia. (renascimento). Mas qual será a sua forma, qual a lei da sociedade nova? Não tento decidi-lo.
No entanto o que eu creio poder assegurar é que há uma Providência e que esta Providência não pôde abandonar durante sei mil anos criaturas racionais, naturalmente desejosos do verdadeiro, do bom e do belo, ao meu génio do mal e do erro; que, por consequência, todas as crenças do género humano não podem ser extravagâncias e que houve verdades da parte do mundo. Trata-se de reencontrar estas verdades, de as desprender do erro que os envolve; é preciso procurar nas ruínas do mundo antigo a pedra angular sobre a qual se reconstituirá o novo. Seria pouco mais ou menos como estas colunas que, segundo os historiadores, foram levantadas antes do dilúvio para transmitir o depósito das tradições aos que sobrevivam, como a arca sobre-nadava através das águas, levando com ela os pais do género humano.
Mas esta pedra de esperança, esta coluna de tradições, esta barca de salvação, onde encontrá-la? Entre todas as ideia da antiguidade, ou desenterrando as únicas verdadeiras, as únicas legítimas? Por onde começar? Por onde acabar? Aqui detenho-me e reflicto: a primeira necessidade do homem, a primeira necessidade da sociedade são as ideias religiosas: o coração tem sede do infinito.
Aliás, se há um Deus e se já homens, são necessárias relações entre eles - Portanto uma religião; - por consequências, uma revelação primitiva; - por consequência ainda, há uma religião primitiva, antiga de origem e por isso mesmo essencialmente verdadeira.
É esta herança, transmitira do alto ao primeiro homem e deste aos seus descendentes, que eu estou interessado em procurar. Desloco-me, pois, através das regiões e dos séculos, removendo a poeira de todos só túmulos, investigando os escombros de todos os templos, exumando tos os mitos, desde os selvagens de Koock até ao Egito de Sesostris; desde os Indianos de Vishnu até aos Escandinavos de Odin. Examino as tradições de cada povo, pergunto-me a sua razão, a sua origem e, ajudado pelas luzes da Geografia e da História, reconheço em toda a religião dois elementos bem distintos: um elemento variável, particular, secundário, que tem a sua origem nas circunstâncias de tempo e de lugar nos quais cada povo se encontrou e um elemento imutável, universal, primitivo, inexplicável pela História e pela Geografia. E como este elemento se encontra em todas as crenças religiosas e aparece tanto mais inteiro, tanto mais puro quanto se remonta a tempos mais antigos, daí concluo que só ele reinou nos primeiros dias e que constitui a religião primitiva. Daí concluo, por consequência, que a verdade religiosa é a que, espalhada por toda a terra, se encontrou em todas as nações, transmitida pelo primeiro homem à sua posteridade, depois corrompida, misturada a todos as fábulas e a todos os erros.
Certamente protestais, zombais da temeridade deste pobre Ozanam, pensais na rã de La Fontaine e no ridículus mus de Horácio. Como quiserdes! Também eu me admirei da minha ousadia; mas que fazer? Quando uma ideia se apoderou de vós há dois anos e superabunda na inteligência, impaciente por expandir-se no exterior, é possível retê-la? Quando uma voz grita sem cessar: faz isto, eu quero-o! pode-se dizer~lhe se cale?
De resto, comuniquei o meu pensamento a M. Noirot, que muito me encorajou a cumprir o meu plano. E como lhe confidenciei que temia achar a carga demasiado pesada para mim, assegurou-me que encontraria bastantes jovens estudiosos prontos a ajudar-me com os seus conselhos e os seus trabalhos: estão pensei em vós, meus bons amigos. Queria ainda dizer-vos mais coisas, mas a saída do portador da carta não me deixa tempo. Em outra ocasião vos falarei da minha maneira de pensar sobre o São-Simonismo; ele aqui não vinga e em geral não é favoravelmente considerado.
O meu pequeno irmão Charlot escreveu a H . . ., mas não tenho a sua carta para anviá-la.
Adeus, (envio) muitas coisas para os camaradas de Paris; para vós, caros amigos, a amizade sincera do vosso companheiro de colégio.
A.F.OZANAM
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